Livro do dia: O livro selvagem

Livro do dia: O livro selvagem

Posted by Kátia

Para o garoto Juan, de 13 anos, o purê de batatas tem gosto de problemas. É que sua mãe só prepara o prato quando está estressada, o que vem acontecendo com frequência nos últimos tempos. A verdade é que os pais de Juan estão se separando e, para piorar, ele não consegue dormir direito. Tudo culpa do sonho escarlate, no qual caminha com botas de ferro por um corredor que não tem fim. Ao longe, um choro feminino. Ele finalmente a alcança, mas fica hipnotizado por uma parede de aparência líquida, de tom escarlate. Juan então se dá conta de que a parede é feita de sangue e acorda desesperado. São noites de desassossego, onde o único conforto é pensar em seu país preferido, a Austrália, e na vida pacífica de coalas, cangurus e ornitorrincos. Em casa o clima está péssimo e só não atinge a inocente Carmen, sua irmãzinha de 10 anos. O pai mudou-se temporariamente para Paris, onde irá construir mais uma ponte levadiça. Juan odeia pontes levadiças – prefere aquelas que mantêm os dois lados unidos.

Como se a situação não pudesse piorar, Juan terá que passar as férias na casa de seu excêntrico tio Tito, a quem não vê há séculos e que claramente prefere a companhia de livros e gatos. É assim que se inicia uma saga de descoberta e amadurecimento, amor, amizade e uma certa dose de loucura pelos livros. Juan Villoro, o autor mexicano, empresta seu nome e algumas memórias de infância para essa história cheia de fantasia e lirismo. Um nome a ser guardado como um tesouro. O livro selvagem é precioso para crianças de todas as idades porque não só cativa o leitor iniciante, mas leva os leitores experientes de volta àquela época deliciosa em que descobriram o poder dos livros. É uma trama inventiva, repleta de declarações de amor à grandes escritores, como Jorge Luís Borges, Júlio Cortazar, Herman Melville, Franz Kafka, Lewis Carroll, Shakespeare...

Então lá vai Juan para a casa do tio, que mais parece um labirinto de livros. Tito – que esconde um coração de ouro por trás do semblante grosseirão – beberica o tempo todo um chá que ele chama de “chá de cachimbo” e vive perdido em meio ao universo de vida própria e pulsante que é a sua biblioteca. Logo o menino descobre que é um “leitor princeps”, o príncipe dos livros, aquele que tem a confiança dos livros e que seria o único capaz de domar o livro selvagem. “Ao longo de muitos anos felizes, aprendi que cada livro tem um espírito. Esse espírito procura o seu leitor. Seu leitor preferido, ideal, absoluto”. De início um tanto amortecido, Juan ganha uma injeção de ânimo ao conhecer a empolgada Catalina. Ao compartilharem a leitura do livro "Viagem pelo rio em forma de coração", eles descobrem que têm o poder de mudar as histórias dos livros. Catalina é uma menina encantadora e inspiradora, ela melhora uma história por conta de sua curiosidade e imaginação. Juan apaixona-se perdidamente, claro.

Mais eis que surge um vilão de capa azul, o “Livro da adivinhação dos livros”. Além de ser um livro pirata que rouba os textos maravilhosos de outras obras, ele influencia negativamente quem o lê. Tito reage de forma sinistra ao ter contato com o livro pirata, mas é salvo por Juan, o nosso príncipe dos livros. Felizmente, Tito recobra a consciência e a ótima personalidade que aliás rende os melhores diálogos do livro. Para mim, Tito merecia um livro só dele, onde fosse retratada sua juventude ao lado da misteriosa e assustadora moça que “fazia as histórias mudarem diante de meus olhos”. Um ou vários, afinal um leitor desse calibre tem muita história para contar. Enfim, o bom e velho Tito volta à sua forma amalucada e vira uma espécie de cozinheiro dos livros, alimentando o corpo e a alma de Juan e Catalina, que finalmente saem em busca do arredio livro selvagem. Genial do começo ao fim, um livro para te acompanhar pela vida toda.

O livro selvagem
Autor: Juan Villoro
Editora: Seguinte/Companhia das Letras
Temas: Livros; Aventura; Fantasia
Faixa etária: A partir de 11 anos
 
Leia também: Para quem, como eu, entende o livro como uma verdadeira entidade - ou como bem disse Juan Villoro na voz do tio Tito, “são superpessoas, vivem para sempre, buscando leitores” – não há nada mais fascinante do que conhecer o processo de como um livro é feito. A dica de hoje não poderia ser outra senão Livros! (Zahar), onde os autores Murray McCain e John Alcorn contam, através de lindas ilustrações e um texto apaixonante, qual é a verdadeira essência de um livro. Um primor.

Sentimento de Borges na Biblioteca de Babel [Ilustração de Jie Ma]
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