Os melhores livros da minha vida são os livros de infância. Ou aqueles que vieram até mim um pouco ou muito mais tarde, mas que, de alguma forma, me transportaram de volta para lá. Tive a felicidade de conhecer e me apaixonar pelo mestre Ray Bradbury (leia mais aqui) logo no começo da minha adolescência, mas o curioso é que somente décadas depois deparei-me de forma arrebatadora com este Licor de dente-de-Leão. Aqui temos a infância de Bradbury recontada e não somente isso: o último verão de Douglas - o “eu” nada secreto de Bradbury - como menino, quando ele se dá conta de que está vivo e que faz parte da pulsação do mundo. Lindo. 

Douglas Spaulding, de 12 anos, vive em Green Town (cidade fictícia inspirada na Waukegan natal do autor) com os pais, o irmão mais novo, Tom, os avós, os amigos e mais uma porção de personagens inesquecíveis. O ano é 1928 e pensamentos extraordinários iluminam a mente de Doug. Sim, ele acabou de constatar que está vivo e por isso começa um tipo de diário, no qual registra os rituais de todo verão e também suas novas descobertas. O preparo do licor de dente-de-leão (nobre tarefa na qual o avô encerra o verão dourado em garrafinhas que só serão saboreadas no inverno seguinte). O primeiro busca-pé do ano. O primeiro estouro de refrigerante. A primeira vez em que corre descalço no mato. O primeiro mosquito, a primeira melancia, o primeiro dia de tênis novos, a primeira uva silvestre roubada do pé. 

O avô Spaulding é um dos personagens mais queridos do livro. O seu ritual de verão favorito é o primeiro corte de grama. Através dele conhecemos outras figuras marcantes, como o joalheiro Leo Auffmann, a quem vovô desafia a criar uma Máquina da Felicidade. Há também Bill Forrester, jovem repórter que vive na pensão do avô e que protagoniza uma narrativa de puro romance. Bill leva Doug para tomar um sorvete e, ao pedir o excêntrico sabor de baunilha e lima depara-se com a senhora Helen Loomis. Bill, no passado, apaixonara-se por uma foto de Helen, sem se dar conta de que o retrato era muito antigo. Agora Helen conta com 95 anos. Ainda desconcertado pelo impacto que Helen causara em sua vida, Bill começa uma conversa que os conduzirá a uma melancólica conclusão: eles seriam almas gêmeas condenadas a se encontrarem sempre na hora errada, em sucessivas reencarnações. Poesia em prosa, claro. 

Doug, em companhia do irmão Tom ou do melhor amigo John Huff, continua a meter-se em aventuras e enrascadas. Eles conhecem o velho coronel Freeleigh, um contador de histórias que é visto respeitosamente pelos meninos como a própria máquina do tempo: sua memória é assombrosa. Outro capítulo conta a história do maníaco conhecido como Solitário – que eu havia lido como parte do livro de contos A cidade inteira dorme. Finalmente descobri o que acontece com a destemida jovem Lavinia Nebbs. Outros pequenos mistérios rondam a cidade, como o rapto da Bruxa do Tarô. Doug e Tom acreditam que a bruxa está viva e enclausurada dentro de um caixão de vidro e decidem mudar o seu triste destino. Enigmático é também o Sr. Jonas, que transporta tesouros em sua carroça e parece saber exatamente o que vai na alma de cada habitante de Green Town. Despedimo-nos da cidade do coração de Ray Bradbury com um último passeio de bonde com o Sr. Tridden e uma visita à cozinha da vovó, que, para Doug, é o centro de toda criação. Muito obrigada, mister Bradbury por me dar esse presente de aniversário tão especial!