E eis que Kate DiCamillo me surpreende uma vez mais. Como se não bastasse ter escrito um dos melhores livros de todos os tempos, A extraordinária jornada de Edward Tulane (aqui), cá está ela novamente, deixando um sorriso permanente em meu rosto e fazendo com que eu vibre com cada movimento de seu curioso (e amoroso) esquilo Ulisses. Kate – que já deu de presente ao mundo personagens fabulosos como o coelho Edward Tulane, o ratinho Despereaux e o cachorro Winn-Dixie – volta agora com um esquilo super-herói apaixonado pela poesia de Rilke. E mais: ele vem acompanhado de uma garota pra lá de especial – e várias outras personagens que vivem a arte, a música, a ciência e a literatura em cada fio de cabelo. Acrescente ainda muitas ilustrações divertidíssimas no ritmo veloz dos quadrinhos e você terá em mãos um livro sublime. 

Tudo começa com a senhora Tickham – que vive grudada em seu grosso tomo de poesias de Bishop, Blake, Ibsen, Poe e Yeats - ganhando um presente de aniversário pra lá de absurdo: um aspirador de pó ultramoderno e multiterreno (!) chamado Ulisses 2000X. Depois de engolir praticamente todos os objetos da sala de Tootie Tickham (inclusive o livro de poesia), o aspirador sai desembestado porta afora e – tragédia das tragédias – engole um esquilo inteiro! A cena é observada da janela pela garota vizinha, Flora Belle Buckman, uma “cínica de nascença” que adora imaginar palavras flutuando em balões de quadrinhos sobre sua cabeça. Ela não somente ama os super-heróis, mas é a fã número de As aventuras ilustradas do espantoso Incandesto! E é justamente por isso que age tão rapidamente, corre quase na velocidade da luz e resgata o pobre bicho de dentro do aspirador de pó. Mais do que isso, ela faz respiração boca a boca e traz o esquilo de volta à vida. Flora sente-se orgulhosa por ser uma leitora tão atenta do COISAS TERRÍVEIS PODEM ACONTECER A VOCÊ!, um de seus quadrinhos-brindes favoritos que lhe ensinara, entre outras coisas, a salvar uma pessoa que tivesse ingerido uma fruta de plástico e a escapar de um enxame de gafanhotos se estivesse vestindo uma camiseta listrada. 

Bom, o esquilo retorna, mas (claro!) com superpoderes. Sua mente se expande e tudo à sua volta ganha sentido, objetivo e explicação. A recém-adquirida superforça o faz erguer seu quase algoz – o aspirador de pó – e ele acaba ganhando o nome de Ulisses em “homenagem” ao desengonçado eletrodoméstico. A empatia entre Flora e Ulisses é instantânea e a menina resolve levá-lo escondido para casa, onde vive com a mãe divorciada Philis, uma impaciente escritora de romances melosos. Flora explica a Ulisses o seu novo papel no mundo como um super-herói e lhe conta sobre a transformação do simplório, míope e gago zelador Alfred T. Escorregão no espantoso Incandesto. Alfred T. Escorregão tinha um periquito de estimação, Dolores, e Flora fica a imaginar que ela e Ulisses também formarão uma bela dupla dinâmica. Mas, como todo super-herói, Ulisses logo encontra uma arqui-inimiga: ao ser invadido pela poesia e utilizar a preciosa máquina escrever de Philis, Ulisses deixa um rastro de salgadinho de queijo. E logo depois, ao descobrir que também pode voar, o esquilo esbarra no maior tesouro dela, um abajur de pastorinha de ovelhas. Pronto, a guerra está declarada. 

Na luta contra o mal, Flora e Ulisses contarão com a ajuda de Tootie e de seu sobrinho-neto William Spiver, um excêntrico e um tanto dramático (adoro!!!) menino que 11 anos, que nunca tira seus óculos escuros, tem excelente olfato (ele sente o cheiro de esquilo de longe!), curte ciência e se diz temporariamente cego por ter sofrido um trauma. Porém, o maior aliado da dupla é George Buckman, pai de Flora, um homem introspectivo e triste que revive graças à determinação da filha e, óbvio, ante a possibilidade de auxiliar um super-herói! 

Outros personagens irão atrapalhar ou iluminar o caminho da nossa duplinha querida, como é o caso da maravilhosa doutora Meescham, vizinha de George, uma carinhosa velhinha que adora ópera. Nascida na misteriosa Blundermeecen, uma cidade de trolls, a doutora filosofa acerca da vida, da morte, da solidão e renova a energia dos heróis com sanduíches de geleia e um coração copioso. Aliás, na estante da casa da doutora Meescham encontramos um volume de Os Sonetos a Orfeu, obra-prima de meu muso-mor Rilke (saiba mais sobre essa pequena-grande obsessão aqui) que ouso dizer que é também o poeta preferido de Ulisses. Afinal é o seu poema que inflama, inspira e finalmente faz nascer o verdadeiro espírito de herói no esquilo: “Tu, enviado por teu chamado, / vai ao limite da tua nostalgia. / Dá-me o corpo. / Eleva-te como chama / e faz grandes sombras em que eu possa mergulhar”. Sim, Ulisses irá elevar-se como chama. E que todos os supervilões saiam de baixo. Mil vezes genial.